domingo, 31 de março de 2013

Conto - Pega Ladrão




       Eric do Vale

Bati uma carteira pra pagar o meu pivô
Sorri cheio de dentes para o meu amor
Ela nem ligou, foi me xingando de ladrão
Pega ladrão!Pega Ladrão! 
( Billy Negão:Cazuza &Guto Goffi)


Atendia pela alcunha de Mão Leve desde os dez para os onze anos e ficava furioso se alguém mencionasse o seu nome de batismo. Diariamente, chegava em casa com o bolso repleto de frutas, doces, brinquedos ou qualquer bugiganga que subtraíra por aí. Quando não se encontrava bêbado, o pai trabalhava aplicando golpes e a mãe permanecia casada por cumplicidade, mesmo apanhando do marido. Distante era o convívio com os familiares, mas quando os visitavam, era certo de, depois, darem por falta de alguma coisa. Conta-se que, ao receberem um parente distante em casa, convenceram-no a pernoitar. Trazia consigo uma carteira que apresentava uma boa quantia de dinheiro, mas, no dia seguinte, ele a encontrou vazia.  A inconstância de moradia era outro motivo que dificultava a manutenção do vínculo familiar e eles ficavam estabelecidos, no máximo, por seis meses até partirem sem se despedir de ninguém, devendo a Deus e ao mundo.

Instalada em uma nova cidade, adquiriram a confiança dos moradores que logo definhava a partir do momento em que alguém do grupo “se esquecia” de devolver os objetos que pedia emprestado aos conhecidos. Seu Dedé que não vendia fiado a ninguém abriu uma exceção, duas ou três vezes, para aquela família, mas se arrependeu quando se deu conta de que tão cedo receberia o que lhe devia.

De saída do armazém, Mão Leve foi abordado por seu Dedé:
- Quero falar com você.
- Sim, já sei. O meu pai disse que hoje mesmo vai pagar ao senhor.
- Posso ver os seus bolsos?
 Antes que pensasse em dar no pé, Chicão, empregado da loja, colocou-se na sua frente e disse:
- Você só sai daqui depois de revistarmos o seu bolso.
 Seu Dedé, apalpando-lhe os bolsos, disse:
- O que temos aqui? Veja só, Chicão!_ Encontrando alguns objetos da loja.
O delegado apareceu nesse momento e falou:
- Agora é por minha conta, seu Dedé. Chicão faz favor de avisar aos pais dele e diga que quero falar com os dois.
- Sim senhor. 
Logo que os pais chegaram à delegacia, a mãe protestou:
- Delegado, o senhor não pode prender o meu filho, porque ele é de menor!
- Sei disso, mas posso prender vocês. Guarda, algemem os dois.
- O que é isso, delegado?_ Perguntou o pai.
- Vocês estão presos.

Seu Dedé desconfiou da constante presença deles em seu estabelecimento, desde que proibira de vender fiado. De um por um, os três surgiam e ficavam ali de bobeira por um longo tempo. Como havia instalado umas câmeras ocultas, seu Dedé reparou na ação da família e, quando deu parte na polícia, arquitetou com o delegado um plano para pegá-los em flagrante. A população, em peso, acompanhou o momento em que o casal entrou na viatura rumo à penitenciaria e todos ficaram perplexos ao saberem que já vinham sendo procurados pela justiça de outras cidades pelos mesmos delitos.

Mão Leve que, naquele momento, tinha quinze para dezesseis anos, foi conduzido ao juizado de menores onde acabara de fazer amizade com Parafuso e Loirinho. Parafuso era craque em arrombar residências, puxar carros e fazer ligação direta. Loirinho, apesar de mais novo, já era mestre em assalto à mão armada.  Os seus novos amigos passaram a chamá-lo de 203, seu número de detento, vindo a tornar-se a sua nova alcunha. Os três não perderam tempo quando o carcereiro deixou o portão aberto, por alguns segundos, e fugiram. De noite, avistaram um carro estacionado numa viela e não pensaram duas vezes, vendo que dentro havia um casal, cada um foi cercando por um lado até rendê-los:
- Desce do carro!  
Parafuso assumiu a direção e, ao avistar uma blitz, tentou desviar, mas foi perseguido até bater num poste quando entrou na contramão.

Mal foram conduzidos ao juizado e novamente os três já estavam nas ruas. Após muitos êxitos alcançados, inexplicavelmente o grupo se dispersou. Naquela altura, 203 tornara-se um expert em furto, invadia residências, assaltava ora armado ou tomando na raça. Aprendera a dirigir e roubar carros com Parafuso. Às vezes, era capturado, mas em pouco tempo já estava nas ruas, cada vez mais fortalecido.  

Perto da hora do almoço, viu uma mulher com umas pernas bonitas caminhando para a rodoviária portando uma bolsa. Com o ferro na cintura, pensou em puxar a arma, porém resolveu seguir os passos dela e calculou o momento oportuno para dar-lhe o bote. Encaminhando-se para a bilheteria, tomou-lhe a bolsa, numa fração de segundos, e correu. Histericamente, ela gritou
- Pega ladrão! Pega ladrão!
O povo se solidarizou com ela:
-Pega ladrão!
 À proporção que 203 ia se distanciando, o coro aumentava:
- Pega ladrão!
 Não se sabe quem foi que colocou o pé para ele tropeçar e cair, mas naquela hora a multidão correu em sua direção e iniciou-se um festival de chutes e socos. Dificilmente, 203 escaparia dali com vida. Naquela hora, um grito tomou conta daquele linchamento:
- Circulando todo mundo!
Mostrando o distintivo, ordenava:
- Russo, algeme-o. Agora é por nossa conta, pessoal!
 A mulher recebeu a bolsa de volta, a multidão foi diminuindo e 203, todo ensanguentado, foi colocado na viatura.

Para 203 aquilo já era hábito corriqueiro. Preso, fugiria novamente e tornaria a roubar e quem sabe fazer coisa pior? A viatura foi passando por um lugar que 203 pouco conhecia. Após atravessar uma estrada, o carro estacionou em um terreno baldio. Quando saltaram, Russo abriu a porta da viatura para 203 sair e ouviu o policial:
- Nós vamos te soltar. Você tá livre, mas fique sabendo que não quero tão cedo ver a tua cara, entendeu?
 Mesmo achado estranho, 203 confirmou balançando a cabeça e o policial continuou:
- Espero que você tenha entendido o recado. Russo, por favor!
 O auxiliar obedeceu-lhe, tirou as algemas de 203 e o policial falou:
- O que está esperando? Se manda!
Ele deu uns quatro passos até o policial falar:
- Só mais uma coisa.
Mal se virou quando o policial o feriu mortalmente com um tiro na barriga. Agonizante, ele caiu no chão. O policial e o seu colega continuaram atirando até acabarem as balas. Colocando o revólver no bolso, o policial cantou o trecho de um samba: “Se gritar pega ladrão...”, e o seu auxiliar completou: “Não sobra um meu irmão”; “Se gritar pega ladrão...”. Entraram na viatura e foram embora.   



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domingo, 10 de março de 2013

Conto - Pisando Em Ovos



     

 Eric do Vale

Falo assim sem saudade,
Falo assim por saber
Se muito vale o já feito,
Mais vale o que será.

  (Milton Nascimento & Fernando Brandt: O que foi Feito Devera)

Olhava-me com ojeriza e a sua repulsa emergia, conforme eu a encarava. Afastei-me da coordenadora, desconhecendo o real motivo daquele comportamento com a minha pessoa. Talvez eu soubesse: sete dias atrás, ela me surpreendeu chamando-a de velha. Voltei à sala, logo que o recreio terminou e a coordenadora apareceu soltando fogo pelas narinas. Mostrando um papel com os nomes dos alunos que estavam dando trabalho,  dizia que era preciso tomar sérias providências. Alguém atrás de mim tocou no meu ombro dizendo que o meu nome estava entre os primeiros.

Tornei a vivenciar, em sonho, a cena do recreio, muitos anos depois. Um amigo meu disse, quando lhe contei, que eu tinha me impressionado, então retruquei:
-Mas não entendo, depois de catorze anos... nem me lembrava mais desse episódio...
-Não mesmo?
-Sim. E tem mais, nunca desejei o mal pra ela...
- Desencana. Depois de você, vieram outros....

Uma nuvem negra pairou sobre a minha cabeça nos dois anos em que estudei nesse colégio. É certo que as punições que sofri decorreram de minhas reinações, mas havia necessidade para tanto terrorismo? O gabinete da vice-diretora igualava-se às salas de interrogatório a que assistimos nos filmes policiais; Não me espantaria se um parque de diversões requisitasse os serviços dessa “instituição educacional” para a sua casa de horrores.

Ano novo, colégio novo e vida nova! A minha classe era constituída por novatos e, em pouco tempo, as “panelinhas” já estavam formadas: os playboys, as patricinhas, a turma do fundão.Quanto a mim, pode-se dizer que eu fosse, mais ou menos, o protagonista de Memórias do Cárcere: não era nada.

Por um dado momento, os resquícios da minha antiga escola me acompanharam. Eu me tremia todo só de ouvir as palavras: suspensão, advertência, expulsão, carimbo na agenda, coordenação, diretoria. Não me sentia bem ver alguém sofrendo represália, mesmo que houvesse motivo, como da vez em que o auxiliar do coordenador apareceu, no meio da aula, trazendo consigo um aluno de outra turma. Pedindo licença ao professor, fez um gesto para que ele fosse ao pedestal e falou para a classe:
- Ele veio aqui fazer um showzinho pra vocês. Se não gostarem, podem vaiar. Comece.
Acabrunhado, levantou o polegar direito e, imediatamente, foi vaiado. Noutra ocasião, estava de saída, uma vez que a aula tinha terminado, e passando perto da coordenação, alguém falou:
- Duvido que escapem.
 Indaguei a razão daquele comentário e a resposta veio em forma de pergunta:
 - Você não viu?
 Percebendo a minha incompreensão, falou-me do caso do tênis: aproveitando o vacilo de um aluno que tirou os sapatos para dormir, durante a aula, pegaram um dos pares e ficaram jogando para um e para o outro até o auxiliar do coordenador aparecer e acabar com a festa. No total, foram sete alunos para a coordenação, inclusive um que levou uma sapatada na cabeça. O coordenador foi categórico:
- Suspensão, por cinco dias.
Todos divergiram e ele se convenceu em deixar passar, na condição de não vê-los mais em sua sala. Até hoje, eu não sei de quem foi a iniciativa de pegar o tênis do rapaz. Seja quem for, merecia uma condecoração por bravura, visto que a fama de bad boy do portador dos sapatos corria solta pela escola.
 Também não entendo como não presenciei essa cena. É provável que eu estivesse atento à aula, porque me sentava na frente e como a confusão se deu lá no fundão...

 Era incrível como um seleto grupo de garotas dominava aquele território em meio à predominância masculina: Alcione era uma figura muito popular e a sua parceira raramente comparecia às aulas. Comumente mudava a tintura de cabelo e quem não a conhecesse direito julgava-a como antipática por causa da sua fisionomia circunspecta. A dupla ganhou hegemonia com a chegada de duas novatas: Janis Joplin e uma patricinha, ás avessas, que se tornou a cabeça do grupo.

Em matéria de “levar sabão” e exclusão sala, elas eram recordistas. Não era qualquer um que tinha peito para, toda hora, “visitar” o coordenador. Apesar da baixa estatura, ele sabia impor respeito: sempre que chegava à sala, ninguém ousava dar um pio, a não ser o ventilador no teto. A minha prioridade, naquele momento, era não me meter em encrenca e no que dependesse de mim, essa meta seria cumprida a rigor.

O primeiro semestre estava chegando ao fim e o auxiliar do coordenador apareceu para avisar que se algum aluno fosse suspenso durante as provas, não teria direito à segunda chamada. Terminado o seu trivial sermão, ele mudou alguns grupinhos de lugar. Sentando-se ao meu lado, uma moça cheia de fricotes resmungou: “Vou me sentar perto desse...”, não me contive em mandá-la... e quando fui me dar conta do que disse, o auxiliar ordenou que eu fosse pra coordenação.

Hoje, recordando esse fato, associo-o com as palavras do personagem principal do livro O Estrangeiro, após assassinar o árabe: “Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde havia sido feliz.”. Certamente, isso foi o que pensei quando me dirigi para a sala do coordenador. Graças a Deus, não fui suspenso e não sofri nenhuma represália, mas ele me deu grandes conselhos:
-Não é do dia para a noite que se muda. Todo mundo comete erros... acontecem.
Do modo como falava, parecia que ele tinha conhecimento da minha vida pregressa.

O colégio promoveu um concurso de teatro e a minha classe demonstrou interesse em participar, mas não dispunham de uma peça escrita. De acordo com o regulamento: a peça deveria ser inédita. Eu possuía uma vaga ideia de elaborar uma história, ambientada na década de 50, e os meus colegas aprovaram a sugestão. Sem nenhuma experiência literária, redigi a peça em um dia. Durante os ensaios, percebi que a partir dali comecei a me entrosar com a classe.

No meio da aula, a professora saiu e voltou acompanhada do auxiliar da coordenação, segurando uma camisinha com liquid paper ele disse:
- Há tempos que isso vem acontecendo... além de ser uma brincadeira de puro mau gosto, é uma falta de respeito com a professora.
Avisando que, cedo ou tarde, descobriria o responsável, saiu da sala e todos se entreolharam. Como a peça seria encenada à tarde, minha preocupação era que não fosse ninguém do teatro. Faltando dez minutos para o recreio, a bolsa da professora sumiu. O auxiliar voltou e disse:
- Assim já é demais! Ninguém sai enquanto a bolsa não aparecer.
 A bolsa não apareceu e fomos liberados, mas o auxiliar reforçou na promessa em desvendar aquele mistério.

Não se falava noutra coisa durante o recreio. Comentei com o meu amigo, que também fazia parte da peça sobre a minha preocupação de que alguém do teatro estivesse envolvido nessa confusão quando o coordenador se aproximou de nós e perguntou:
- Resolvido o problema da professora?
- O da camisinha ou da bolsa?_Questionei eu.
-Camisinha?
 Antes que eu pensasse em dizer algo do tipo “nada não”, o meu amigo deu com a língua nos dentes. Agradecendo as informações, despediu-se de nós e avisou que, logo mais, “visitaria” a nossa turma. Assim que ele saiu, eu falei:
-Ele não estava sabendo de nada, e agora?!
 -Agora o circo vai pegar fogo!
 -Vai pegar fogo e muita gente vai se queimar. Só de pensar quando ele descobrir o responsável, eu tenho pena do infeliz... e você contou tudo!
 -Ele ia ficar sabendo de qualquer jeito.
–Eu não quero me sujar com a galera... Desde que eu vim estudar aqui, jurei pra mim mesmo que não me meteria em confusão
-Relaxa.

Cinco minutos após regressarmos à sala, ele apareceu informando que a professora esqueceu a bolsa na sala dele e falou:
- Mas isso foi por causa de um fato anterior que eu tomei conhecimento, durante o recreio, através de dois rapazes desta sala.
Receei que ele desse nome aos bois, mas alguém, lá de trás, tomou à dianteira e mencionou, em alto e bom som, o meu nome e o do meu amigo. Então, constatei:
- Estamos perdidos!
Também ficamos sabendo que a professora não poderia, de forma alguma, levar sustos, porque se encontrava nos primeiros meses de gestação. Ele ainda falou que o responsável por aquela brincadeira também estaria por trás da história dos moldes que colocaram no birô de outra professora e prosseguiu:
-Eu vou dar um prazo de dois dias para que o responsável se apresente e confesse.Do contrário, vou descobrir e darei transferência. E eu descubro mesmo! Já descobri, uma vez, quem roubou minha carteira... e se eu descobrir que estão dando cobertura... também receberá transferência.
E foi embora.

Não demorou muito para que o quarteto fantástico se apresentasse à coordenação e confessasse tudo até a travessura dos moldes. Como castigo, foram suspensas por dois dias. E, para o meu alívio, não foi ninguém do teatro. Apesar de todo o nosso empenho para montar a peça, não nos classificamos. Tudo isso pode ser definido numa única frase: “Jogara a viola no mundo, mas fui lá no fundo buscar.”.  



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