segunda-feira, 31 de julho de 2017

Conto- Bomba Relógio

Eric do Vale

            Tenho para mim que no período em que estudamos juntos, ele nunca foi com a minha cara; eu também não gostava muito dele e pela mesma razão: o achava um babaca. Portanto, estávamos quites.
            Lembro-me muito bem dele, naquela época, contando vantagem em relação a si próprio. Havia cabimento em fazer aquilo, porque, comumente, ele frequentava as partidas de futebol e as baladas.
Quanto a mim, eu era o oposto: um jovem extremamente complexado; míope, franzino, tímido e dado aos livros. Tais características permitiram-me ser alvo de gozação por boa parte da classe, inclusive dele.
De saída, após a prova, conversávamos sobre um camarada que estudava conosco e que, diga-se de passagem, era um mala sem alça.
-Ele é um otário, assim como o Daniel. _ Disse ele.
Ao ouvir aquilo, questionei:
-Mas vocês não são tão amigos?
-Sim, somos; mas é por falsidade.
Não estava acreditando no que tinha acabado de ouvir. Considerando as inúmeras asneiras que ele costumava dizer, aquilo, para mim, foi a gota d´água!
Pensei em procurar o Daniel e contar-lhe tudo, mas do que adiantaria? Seria a minha palavra contra a dele. Sendo assim, desisti da ideia sem nunca esquecer daquilo que ele me falou.
O tempo passou até que algum conhecido me colocou no grupo de Whatsapp do colégio. Estavam todos lá: ele, o Daniel e eu. Apesar de me sentir desconfortável naquele ambiente, tinha a esperança de que todos tivessem melhorado. Engano meu: volta e meia, os integrantes postavam vídeos e fotos apelativas; principalmente, ele. As conversas então... Sem comentários!
Como não compactuava com nada daquilo eu era tido como o mais sério do grupo. Mesmo assim, procurava interagir com todos falando algo que, ao meu ver, poderia ser interessante e até conseguia obter algum êxito. Vendo as minhas postagens, ele procurava me tirar de tempo fazendo piadinhas muito pesadas até que, um dia, eu o procurei e disse-lhe que estava passando dos limites.
-É assim? _ Alterando a voz.
Ele disse que, a partir daquele dia, me ignoraria e finalizou:
-Ai de você, se vier com brincadeira comigo.
Depois disso, fiz um exame de consciência e conclui que estava sendo muito radical, por isso deixei com que o tempo se encarregasse de tudo.
Cada qual, ao seu modo, continuou fazendo as suas postagens até que, um dia, ele parabenizou um colega nosso sem perder a piada: “Espero que você, atualmente, tenha aprendido a usar cueca...”.  
Minutos depois, encontrei uma mensagem que dizia: “Sabe por que a tartaruga vive mais? Porque ela cuida da própria vida.”. Não só achei interessante, como resolvi compartilhá-la em várias redes sociais, inclusive nesse grupo.
Ele, logo, manifestou-se copiando aquela mensagem e escreveu embaixo dela: “Sabe por que eu não mando alguém a PQP? Sabe por quê?”. Em seguida, desligou-se do grupo.
Todo mundo tentou trazê-lo de volta, mas ele, desde então, tem-se recusado. Além disso, todos se perguntam:  “O que foi que aconteceu?”.  Respondo:

-Eu é que sei?

quarta-feira, 26 de julho de 2017

Conto- Tudo Outra Vez


Eric do Vale


(Ao som de Por Enquanto)


               
Fiquei fora de casa, por duas semanas: viajamos para comemorar os festejos de final de ano e quando voltamos, recebi um convite para passar as férias no interior. Naquela cidadezinha, eu me sentia um rei: estava totalmente desprendido de qualquer compromisso. Quando voltei, definitivamente, para a casa, faltava uma semana para as aulas começarem. Agora, era necessário retornar a realidade e, acima de tudo, encará-la:
Pouco antes de entrar de férias, eu já sabia que muita coisa iria mudar; no entanto, a ficha só caiu, naquele primeiro dia de aula: algumas pessoas que haviam estudado comigo, no ano anterior, também migraram para o turno da manhã.
 Aquilo, aparentemente, era muito bom, mas não significava muita coisa para mim, porque eu não tinha por perto os meus amigos de outrora. Na verdade, havia sim um que integrava o meu ciclo de amizades, porém esse não estava na mesma sala que eu. Talvez, seja por isso que, no decorrer do semestre, fomos nos distanciando.   
Assim que comecei a estudar naquele colégio, fiz amizade com um garoto e os nossos laços foram se estreitando, durante todo aquele ano letivo. Durante o intervalo, não nos desgrudávamos por nada e conversávamos bastante.
 Esse meu amigo, no ano seguinte, mudaria de colégio. Pelo jeito, o nosso distanciamento seria inevitável. Nunca me esqueci daquela frase dele, no último dia de aula, quando nos despedimos:
-Um dia, nós vamos nos encontrar.
Naquele mesmo dia, aconteceu outro fato marcante:  um colega de sala veio me dizer o seguinte:
-Me perdoe.
Por que estava me falando aquilo?
 Era verdade que, desde que comecei a estudar lá, ele não largava do meu pé, mas, pouco tempo depois, fomos nos entendendo. Nunca entendi direito o porquê dele ter me pedido desculpas. Para mim, tudo, naquele momento, já havia sido resolvido e eu, francamente, tinha me esquecido das nossas desavenças.

Ele também não estudaria mais naquele colégio, no próximo ano. Lá estava eu, naquela sala, iniciando um novo ano letivo com uma turma nova e, ao mesmo tempo, me lembrando de tudo aquilo.

terça-feira, 18 de julho de 2017

Conto- Cenas Dos Próximos Capítulos

Eric do Vale


A televisão estava sintonizada naquele canal, onde, dentro de alguns instantes, iria ao ar mais um capítulo daquela novela. Eis que o locutor, naquele horário, fez o seguinte comunicado: “Por motivo de força maior, hoje, será reapresentado o capítulo anterior.”. Ninguém entendeu direito o motivo daquele aviso e o locutor finalizou: “A novela voltará a ser exibida amanhã”.
Como consolo, restava rever o capitulo de ontem. A noite, naquele mesmo horário, a situação foi a mesma: o narrador, dessa vez, disse que a novela voltaria a ser exibida na próxima semana.
...

Ela possuía os ingredientes necessários para uma trama, por isso foi escrita de maneira despretensiosa. Gradualmente, a telenovela foi arrebatando uma boa margem de telespectadores e em seguida, tornou-se líder absoluta de audiência naquele horário. Entretanto, a emissora de televisão que produzia aquela novela vinha, há muito tempo, atravessando uma enorme crise financeira.
Diariamente, os funcionários reclamavam dos salários que estavam atrasados, há mais de dois meses. Algumas programações vinham sendo retiradas das grade abruptamente
A produção e o elenco da novela deram prosseguimento, assim como os autores eu não cessavam de escreverem os capítulos. Todos tinham interesse de levar aquele trabalho adiante, no entanto a emissora sucumbiu à crise e demitiu todos sem aviso prévio.

...

Sete dias depois, acomodados no sofá, todos aguardavam ansiosamente a volta daquela trama, quando foram surpreendidos pelo seguinte aviso: “Por motivo de força maior, iremos reapresentar o compacto de uma outra novela”.
Tamanha foi a perplexidade, que todos se entreolharam sem saber direito o que dizer. Não escondendo a resignação que, naquele momento, sentiam, cada um foi se levantando.
O silencio só foi quebrado, quando alguém desligou a televisão e disse dum palavrão qualquer. Aquela revolta não era para menos: por que aquilo foi acontecer justamente quando faltavam vinte capítulos para o termino!


domingo, 16 de julho de 2017

Crônica- Nem Tudo É Aquilo Que Parece Ser

Eric do Vale


Uma senhora comentou que, quando jovem, foi repreendida pela mãe, ao cantar a música Mon Amour Meu Bem Ma Femme. Só por causa da última palavra, feeme.  Além de estranho, esse escarcéu, para os dias de hoje, pode ser considerado como algo engraçado, visto que tal termo não apresenta nenhum significado chulo
Qualquer pessoa que se interesse em aprender uma língua estrangeira perceberá, quando procurar no dicionário, que femme nada mais é do que mulher. Assim que comecei a estudar francês, observei que, na maioria das vezes, alguns termos estrangeiros, quando incorporados na gíria brasileira, adquirem um sentido pejorativo.
A coerência dessa afirmativa pode ser constatada no final do século XIX e início do Século XX, período em que a população brasileira aderiu ao padrão cultural francês. Um exemplo típico são os bares, confeitarias e restaurantes que passaram a ser chamados cafés ou bestrau.
Os bordéis brasileiros também adotaram esse tipo de comportamento, daí alguns termos utilizados pelas “femmes” desse estabelecimento. Por isso, a língua francesa passou a ser hostilizada pela ala tradicional e puritana do nosso país. Mesmo que, atualmente, o inglês ocupe o pedestal de idioma universal a língua francesa, nos dias atuais, apresenta, injustamente, um quê de pecaminosidade, aqui no Brasil.  
Rendez-vous é um exemplo disso: em seu país de origem, significa encontro; enquanto que aqui, no nosso país, essa palavra apresente uma outra conotação. E, diga-se de passagem, bem pejorativa.
Da mesma forma, é o termo Madamme: uns poderão achar que essa palavra esteja vinculada a uma mulher refinada e detentora de posses, quando, na verdade, era utilizada pelas cafetinas.
Ninguém tem obrigação de conhecer uma língua de forma tão aprofundada, mas, diante desse exemplo, torna-se necessário possuir uma noção básica na iminência de evitar-se certos choques culturais.


sábado, 8 de julho de 2017

Conto- Amor- Próprio

Eric do Vale


“Só sobraram restos
Que eu não esqueci
Toda aquela paz
Que eu tinha”
(Meu Mundo E Nada Mias: Guilherme Arantes)

I

Por pouco, não cometeram um desatino. Acalmado os ânimos, era necessário dar aquilo por encerrado:
-Arrume as suas coisas e vá embora daqui.
O que seria mais doloroso, dizer ou ouvir aquela frase? Depois de tantos anos, não era justo! Se houvesse traição de uma das partes, aquilo seria compreensível; mas, por causa de uma rusga...

II

-Nunca é tarde para recomeçar.
-Estou completamente de acordo e sabe que pode contar comigo para o que der e vier.
-Agradeço muito a sua preocupação; agora, preciso colocar a cabeça no lugar. Apesar de tudo, não guardo nenhuma mágoa.
-Sei disso. Quem dera, se todos fossem assim. Olha, não sou só eu que acha isso de você: conheço alguém que também sabe reconhecer esse seu valor.   E não sou só eu que pensa assim sobre você. Muitos, inclusive....
-Não está se referindo a ...
-Sim, estou. Tenho certeza de que se você pedir...
-Eu poderia fazer isso, mas tenho brio.

...
- De uns tempos para cá, venho notando que você tem falado pouco, andado distante de tudo. Estou aqui, a horas, conversando com você e sequer prestou atenção no que te disse.
- Eu estou com a cabeça tão atordoada, me desculpe!
-Como te disse: não é de hoje que você está assim. E até sei por que. Sejamos realistas: você nunca se conformou com esse rompimento
-Para te dizer a verdade: não. Eu, por mim, voltaria atrás.

-E o que te impede de fazer isso?

sexta-feira, 7 de julho de 2017

Conto- A Minha “Primeira” Causa

Eric do Vale



Pouco tempo depois de ter conseguido a carteirinha da OAB, alguém que eu conhecia, de longa data, telefonou-me requisitando os meus serviços.
-O que posso ser útil? _ Perguntei.
-Quero mover um processo contra... Eu não aguento mais! Todo dia, é esse inferno!
Eu já sabia do que se tratava e não condenava de fazer tais comentários, visto que qualquer um também agiria da mesma maneira.
 Todo mundo daquele prédio tinha conhecimento das homéricas brigas daquela família. Várias vezes, a polícia foi acionada para conter aquela tensão toda. Daí, a alcunha de “casa de doido”. 
-Todo mundo tem seus atritos, mas pelo amor de Deus! Ninguém é obrigado de escutar tudo aquilo É de manhã, de tarde e de noite escutando gritos e xingamentos! Você sabe o que é isso? _ Disse a minha futura cliente.
Entendia perfeitamente aquele desabafo, mas abdiquei da minha primeira causa, porque eu também conhecia aquele pessoal.